Pietro Verri (1728-1797): contra a tortura

"Sobre a tortura, deve-se sempre reduzir a questão a este ponto: ou o crime é certo ou é apenas provável. Se o crime é certo, os tormentos são inúteis, e a tortura é aplicada desnecessariamente, mesmo que constituísse um meio para desvendar a verdade, já que, entre nós, o réu sabidamente culpado é condenado, ainda que não confesse o crime. Neste caso, portanto, a tortura seria uma injustiça, porque não é justo fazer um homem padecer desnecessariamente, e padecimentos da maior gravidade. Se o crime, por outro lado, é apenas provável, qualquer que seja o termo com que os doutores diferenciam o grau de probabilidade, muito difícil de se medir, é evidente que será possível que o provável culpado seja de fato inocente; então, é uma  suprema  injustiça  que  se  exponha alguém que talvez seja inocente a maus-tratos certos e a crudelíssimos tormentos, e submeter um homem inocente a tais suplícios e misérias é tanto mais injusto na medida em que se age com a própria força pública confiada aos juízes para a defesa do inocente contra os ultrajes." (Pietro Verri (1728-1797), Observações sobre a tortura, Cap. 11)

"Qual é o sentimento que nasce no homem ao sofrer uma dor? Este sofrimento é o desejo de que a dor pare. Quanto mais violento for o suplício, tanto mais violentos serão o desejo e a impaciência de que chegue ao fim. Qual é o meio com que um homem torturado pode acelerar o término da dor? Declarar-se culpado do crime pelo qual é investigado. Mas é verdade que o torturado cometeu o crime? Se a verdade é sabida, é inútil torturá-lo; se a verdade é duvidosa, talvez o torturado seja inocente, e o torturado inocente, tal como o culpado, é igualmente levado a se acusar do crime. Portanto, os tormentos não constituem um meio para descobrir a verdade, e sim um meio que leva o homem a se acusar de um crime, tenha-o ou não cometido. Nada falta a este raciocínio para ser uma perfeita demonstração." (Pietro Verri (1728-1797), Observações sobre a tortura, Cap. 9)


"Nas catástrofes públicas, a fraqueza humana tende sempre a suspeitar de causas extravagantes em vez de julgá-las decorrentes do curso natural das leis físicas. Vemos os camponeses a atribuir o granizo não às leis dos meteoros, mas sim às feiticeiras. Vemos os próprios sábios romanos, no tempo em que eram rudes, atribuírem a peste que os afligiu a venenos preparados por uma conjuração extremamente inverossímil de matronas romanas. Tais opiniões, quanto mais extravagantes são, tanto mais crédito recebem, pois se julga que a causa de um efeito extravagante haverá justamente de ser extravagante, e se prefere apontar sua origem na perfídia humana, a qual pode ser refreada, do que na implacável física, que se subtrai às instituições humanas."  (Pietro Verri (1728-1797), Observações sobre a tortura, Cap. 2)



Sobre o livro Observações sobre a tortura:
"O tema central do livro de Pietro Verri, escrito entre 1770 e 1777, é a reconstrução, apoiada em documentos, de um processo criminal realizado em Milão no ano de 1630. Esse processo ficou conhecido como "processo dos untores", porque os réus eram acusados de untar, passar um óleo venenoso nas paredes da cidade, para assim espalhar a peste, que exterminou grande parte da po-pulação milanesa, chegando a matar 800 pessoas por dia.

Em 1630 Milão estava sob domínio espanhol, e soldados mercenários de várias procedências, gente atrasada e embrutecida, circulavam por quase toda a Europa, transportando suas mazelas através das cidades, muitas delas vivendo na imundície, sem os mais elementares cuidados de higiene. E foi da Espanha que chegou a notícia de que uma epidemia de peste caminhava através das fronteiras, sendo intencionalmente disseminada por pessoas que esfregavam um óleo mortífero nas paredes. O atraso e as superstições não deixavam perceber o absurdo dessa afirmação, pois obviamente os untores deveriam ser as primeiras vítimas.

Quando os médicos milaneses deram o alarme, anunciando a chegada da peste, a população se revoltou contra os médicos, que foram acusados de atrair a peste com suas denúncias, recebidas como falsas e alarmistas. A população só se convenceu da realidade quando o número de mortos por dia já era muito elevado e as autoridades, visando obter a cooperação do povo, fizeram desfilar pela cidade, à luz do dia, uma carreta abarrotada de cadáveres com os sinais evidentes da peste.

Desesperado, o povo queria vingar-se de qualquer modo dos causadores de tamanha tragédia e passou a procurar descobrir quem é que estava esfregando o óleo envenenado nas paredes de Milão. O governo, querendo mostrar diligência, oferecia um prêmio a quem denunciasse os culpados. E duas comadres, únicas testemunhas que deram fundamento ao processo, afirmaram ter visto quando um modesto comissário do serviço sanitário, Guglielmo Piazza, chegou à rua tendo um papel na mão esquerda. Parou em frente a uma casa, olhou para ela, fez o gesto de quem estivesse escrevendo sobre o papel e, em seguida, apoiou a mão direita na parede.

Foi o quanto bastou para que uma das comadres, que olhava a cena da janela de sua casa, fosse comentar com a outra esse fato, que lhe parecia suspeito. Esta afirmou que também tinha observado os movimentos do infeliz Piazza, achando-os muito estranhos. A partir daí foi feita a denúncia, que se espalhou rapidamente, dando como descoberto o untor. O governo da cidade, ou por ter sido muito pressionado pelo povo ou, possivelmente, por achar conveniente identificar um culpado e assim exonerar-se de responsabilidade, também agiu como se estivesse fora de dúvida a descoberta do criminoso.

Guglielmo Piazza foi preso e se iniciou o processo criminal, cujo objetivo era só confirmar aquilo que já se tinha como certo: ele era um dos untores. Brutalmente torturado na presença de um juiz, pendurado pelos braços até que, por seu próprio peso, ocorresse o deslocamento à altura dos ombros, Piazza tentou negar sua culpa, mas por diversas vezes, quando baixaram a corda que o sustinha, esperando que ele confessasse, sua obstinação em afirmar-se inocente irritou o juiz. Este determinou que o suspendessem novamente, até que resolvesse confessar.

Não suportando mais as dores, o infeliz acusado confessou, mas aí se iniciou nova sessão de tortura, para que ele dissesse quem lhe tinha fornecido o unguento pestífero. Outra vez levado ao desespero, Guglielmo Piazza apontou como seu cúmplice um pobre barbeiro seu vizinho, Gian Giacomo Mora, que, pela descrição feita no processo, Verri conclui que era "semideficiente", incapaz de participar de uma ação criminosa que exigisse esperteza e inteligência.

Igualmente torturado, Mora também acabou confessando. A polícia foi à sua casa e apreendeu uma tina de lixívia, que a mulher do barbeiro usava para a limpeza da casa. O conteúdo da tina foi logo apontado como sendo o material de fabricação do unguento mortífero e, assim, um reforço da prova.

Desse modo, de tortura em tortura, com apoio na lei e com a construção arbitrária da prova pelo juiz, Piazza e Mora foram condenados à morte, executando-se a pena com a mesma brutalidade observada nas sessões de tortura. Assim se afirmava que estava sendo feita justiça. Tortura e pena de morte, violências irmãs, serviram nesse caso, como em muitos outros, desde muito antes até os nossos dias, para satisfazer os baixos instintos e os sentimentos de ódio de uns e para dar apoio ao cínico oportunismo de outros, que manipulam a ignorância para se manterem numa posição de poder.

[...]O povo quer que alguém seja punido por seus incômodos e por suas desgraças, mesmo que seja absolutamente ilógica essa pretensão punitiva. E o próprio povo, quando é ignorante e preconceituoso, contribui para que alguns sejam vítimas da arbitrariedade do governo e assim fortalece os governantes tirânicos e sem escrúpulos.” Prefácio de Dalmo Abreu Dallari, pags X-XIV, do livro Observações sobre a tortura – Pietro Verri

Nenhum comentário:

Postar um comentário